Casos de maus tratos a animais escancaram falta de política pública

Bauru – Nos últimos anos, é inegável o desenvolvimento econômico pelo qual Bauru vem passando. Porém, este crescimento não tem sido sinônimo de amadurecimento em questões importantes como a aplicação de políticas públicas em vários setores – entre eles, o que diz respeito a animais maltratados e abandonados, uma realidade que também está “em alta”.

De janeiro a junho deste ano, o Centro de Controle de Zoonoses (CCZ) da cidade já aplicou 124 multas a proprietários de animais por maus tratos e abandono. No ano passado inteiro foram 350 multas. Ou seja, é como se em apenas 15 dias do ano não tenha sido registrado nenhum caso.

A situação é grave e traz à tona novamente uma série de questionamentos, principalmente com relação a políticas que poderiam fazer com que esse problema não continuasse a acontecer.

Como o próprio nome diz, o CCZ é um órgão que atua no controle das zoonoses (doenças que podem ser transmitidas de animais ao homem). A apreensão de animais em condições de maus tratos só ocorre depois que a autuação – advertência – é seguida de uma multa. Essa penalidade só é aplicada se for constatado pelo CCZ, depois de 15 dias da primeira autuação, que o animal continua sendo maltratado.

Equinos
Apesar da assessoria de imprensa da Prefeitura Municipal ter informado que a maioria das multas aplicadas por esse motivo – cujos valores vão de R$ 50,00 a R$ 3.500,00 – referem-se a proprietários de animais de pequeno porte, donos de cavalos usados como tração de carroças correspondem a boa parte deste número.

Em abril deste ano, o Jornal da Cidade mostrou a história do cavalo “Cacique”. Ele foi tirado de seu proprietário e resgatado por membros da organização não-governamental (ONG) VidaDigna de Bauru após cair com fortes dores em frente a uma casa de produtos agrícolas na rua Monsenhor Claro, em março deste ano.

Ele puxava uma carroça que transportava materiais recicláveis entre Bauru e Arealva. Em suas patas, ao invés de ferraduras, pedaços de borracha aplicados com pregos enferrujados evitavam o contato do casco com o solo. Isso resultou em graves ferimentos.

“Cacique” passou por tratamento na clínica veterinária da Universidade Paulista (Unip) de Bauru e se recuperou, mas nunca mais poderá ser montado novamente. O desfecho dessa história foi acompanhado em um termo circunstanciado instaurado pelo delegado Dinair José da Silva, titular do Distrito Policial (DP) de Crimes Ambientais de Bauru. “O Cacique não voltou para o seu dono, foi doado a outra pessoa”, revelou o delegado.

Na última segunda-feira, a equipe de reportagem do JC testemunhou outro caso de maus tratos a um equino, chamado “Fuzil”, que está sendo acompanhado pelo CCZ. Mas quantos outros animais como este estão debilitados neste momento em função de maus tratos? As ONGs de defesa dos animais já não conseguem atuar da forma como gostariam diante de tantos casos e da falta de estrutura do município para lidar com isso.

Serviço
O Distrito Policial de Crimes Ambientais, que fica na avenida Comendador Daniel Pacífico, 2-117, Vila Martha, deve ser acionado em casos de maus tratos a animais. As denúncias podem ser feitas anonimamente através dos telefones (14) 3238-7377 e (14) 3238-5151, ou ainda pelo e-mail dp01bauru@policia civil.sp.gov.br.

Machucado e muito fraco, cavalo precisou de atendimento na rua
Por volta das 14h30 da última segunda-feira, a equipe de reportagem do JC foi chamada para “tentar auxiliar” no resgate de um cavalo que caiu, fraco e com diarreia, ao carregar uma carroça no cruzamento das ruas Doutor José Ranieri e Pedro Bertolini, no Jardim Marambá.

No local, uma situação deplorável que escancara a falta de estrutura do setor de Saúde com relação a políticas públicas para auxiliar na fiscalização e socorro de animais em situação de maus tratos.

“Fuzil” se entregou e deitou. No local já estavam funcionários do CCZ, policiais militares e Ricardo Ferreira Barude, 43 anos, proprietário do animal.

“Esse cavalo não estava assim ontem. Eu cuido dele. Mas não tenho condições de pagar por tratamento veterinário. O pessoal do CCZ perguntou se eu tinha condições de pagar pelo tratamento, eu disse que não, e disseram que o cavalo ia morrer aí. Eu sei que o lombo dele está machucado, mas não tenho dinheiro para comprar uma cela adequada”, justificou Ricardo.

A situação dele não é diferente da de muitos carroceiros na cidade, que precisam do cavalo para tracionar uma carroça e ganhar o seu sustento apanhando recicláveis e entulhos diversos.

“Eu pego entulho e com esse dinheiro sobrevivo como dá. Alimento bem o cavalo e preciso dele para o meu sustento. Ontem mesmo ele carregou seis carroças de entulho”, acrescentou Ricardo.

Flávia Ancelmo Franzoi, moradora do Jardim Marambá, viu quando Fuzil caiu no local e acionou a Polícia Militar. “Ele não pode tirar esse cavalo daqui enquanto não for medicado. Nós ficamos com as mãos atadas porque não sabemos o que fazer. Ninguém quer recolher o animal.

O veterinário do CCZ, Mário Ramos, analisou a situação em que o animal se encontrava: com vários machucados no lombo, fraco e aparentemente desidratado.

“O dono será autuado por maus tratos e daqui 15 dias iremos ver em que condições este animal estará. Se ainda estiver sob maus tratos, o dono será multado e posteriormente poderá perder a guarda do animal”, explicou Mário.

O que fazer?
Como Bauru é carente de políticas públicas relacionadas a animais, fica difícil saber quem acionar quando uma cena de maus tratos é presenciada. Em janeiro deste ano, o JC noticiou que o Conselho Municipal de Proteção e Defesa dos Animais (Comudpa) foi criado, mas nunca saiu do papel.

O Comudpa, conforme prevê a lei, é um órgão colegiado, de caráter consultivo e deliberativo, com o objetivo de elaborar políticas públicas de proteção aos animais. O órgão deve ser composto por 14 membros, entre eles representantes de secretarias da Saúde, Meio Ambiente, Educação, Ibama, Cetesb, sociedade civil, de três universidades, Conselho Regional de Medicina Veterinária e de entidades de proteção animal/ambiental. Mas até hoje, nada foi feito para que funcionasse efetivamente.

A advogada e membro da ONG VidaDigna, Jacqueline Didier critica a falta de políticas públicas para esse tipo de atitude. “O CCZ diz que não recolhe, a Emdurb não fiscaliza, então ficamos perdidos. O CCZ deveria recolher esse animal, já que foi constatado maus tratos. Esse animal não deveria estar nas mãos do dono”, opinou Jacqueline, sobre o cavalo “Fuzil”.

Na verdade, a melhor opção e também a mais correta é acionar o DP de Crimes Ambientais. O delegado titular do DP, Dinair José da Silva, ficou surpreso ao saber do ocorrido em relação a este cavalo.

“Tanto a PM quanto o CCZ poderiam ou deveriam ter registrado o boletim de ocorrência, já que os maus tratos foram constatados pelo veterinário. Eu entendo que o CCZ é um órgão capacitado que deveria recolher esses animais. Se tivessem nos acionado, talvez esse cavalo não teria nem voltado para as mãos do dono”, revelou Dinair.

A equipe de reportagem do Jornal da Cidade apurou e constatou que nem o CCZ e nem a PM registraram o boletim de ocorrência (BO) de maus tratos. Mas mesmo sem o BO, o DP de Crimes Ambientais vai apurar o caso, como foi feito para a situação do cavalo “Cacique”.

De acordo com Dinair José da Silva, o inciso 3º do artigo 3º da lei municipal 4.286, que trata da disciplina do CCZ de Bauru, é explícito quando se trata de apreensão de animais vítimas de maus tratos. “A lei diz que será apreendido todo e qualquer animal submetido a maus tratos”.

Fica a questão no ar: se foi constatada a situação de maus tratos no cavalo “Fuzil”, atendido na última segunda-feira em plena rua, porque não apreendeu? Segundo Mário Ramos, veterinário do CCZ, é preciso cumprir as etapas: autuação, multa e apreensão.

Desfecho
Após a chegada de funcionários do CCZ e da Polícia Militar no local em que o cavalo “Fuzil”, de 3 anos de idade, caiu, uma discussão se instalou. Ele continuava fraco, mas conseguiu se levantar. Por fim, o CCZ resolveu doar os medicamentos necessários para o cavalo, se houvesse alguém para aplicar as injeções.

“Nós ficamos com dó do animal, mas cuidar dele não é tarefa do CCZ. Nós trabalhamos para o controle de zoonoses”, frisou o veterinário Mário Ramos.

Como Ricardo Ferreira Barude, proprietário de “Fuzil”, conhecia um tratador de cavalos, a Polícia Militar (PM) se propôs a buscar o medicamento no CCZ e o colega de Ricardo.

Minutos depois eles retornaram. Foram doados quatro litros de soro, um antibiótico e dois anti-diarreicos, que também possuem vitaminas em sua composição.

Somente com um sorriso no rosto e muita boa vontade, Ataíde Mariano Silva preparou o soro e aplicou em “Fuzil”. O animal começou a melhorar instantes depois. “Eu aprendi a cuidar de cavalos desde os meus 10 anos de idade. Meu pai já cuidava, meu irmão também e acabei aprendendo. Sempre ajudo o pessoal da comunidade”, disse Ataíde.

Flávia Ancelmo, que ligou para o JC para contar sobre o caso, fiscalizou os cuidados a “Fuzil” e no início da noite de ontem contou como se deu o desfecho do caso.

“Eu fiquei muito feliz porque ontem (anteontem) às 23h o cavalo ainda estava lá descansando. Hoje (ontem), por volta das 6h eu e meu marido fomos lá ver e ele já tinha sido levado, mas a carroça ficou. Pelo menos ele não foi levado tracionando a carroça”, disse Flávia, mais aliviada.

Nem o Centro de Controle de Zoonoses e nem a PM confirmaram se registrariam boletim de ocorrência por maus tratos sobre o caso, apesar da situação ter sido constatada pelo veterinário Mário Ramos. O fato seria registrado apenas no talonário policial, para controle de ocorrências atendidas durante o dia.

Regulamentação de carroças: no papel
A situação envolvendo maus tratos a animais, mais especificamente cavalos, reacende a antiga discussão sobre a regulamentação das carroças, que deveria estar sendo feita pela Empresa Municipal de Desenvolvimento Urbano e Rural de Bauru (Emdurb) desde 2010. Com base na legislação municipal, o artigo 21 do decreto de lei nº 11.213 de 15 de abril de 2010, diz: “Os animais utilizados nos veículos de tração animal serão vistoriados, cadastrados e fiscalizados pelo Centro de Zoonoses”. A fiscalização da regularidade das carroças cabe à Emdurb.

Já o inciso 1º do artigo 22 do mesmo decreto explicita: 1 – “No ato do cadastramento do animal deverá ser apresentado: declaração e comprovação da propriedade do animal por meio de documentos ou de duas testemunhas que possam atestá-la; 2 – Apresentação de comprovantes de aplicação de vacinas obrigatórias cuja espécie seja abrangida por normas do Ministério da Agricultura e Pecuária e da Secretaria da Agricultura do Estado; 3 – Apresentação de cópia do Imposto Territorial Rural ou Urbano (ITR) ou (IPTU) da propriedade localizada para a qual o animal será obrigatoriamente destinado quando não em trabalho”.

Segundo a assessoria de imprensa da Emdurb, desde então apenas um carroceiro conseguiu se cadastrar. E até ontem, nenhum foi autuado por irregularidade.

Unip de Bauru e Unesp de Botucatu oferecem atendimento
A equipe de reportagem do JC pesquisou e não encontrou nenhum local específico que acolha cavalos e outros animais de grande porte em situação de maus tratos. Mas a clínica veterinária da Universidade Paulista (Unip) e o Hospital Veterinário da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu oferecem atendimento de baixo custo, dependendo da condição socioeconômica do proprietário do animal.

O Hospital Veterinário da Unesp possui uma viatura para recolha de animais de grande porte em caso de necessidade de atendimento, mas não para resgate de animais abandonados.

“Nós fazemos uma triagem quando o animal chega. É analisada qual a situação financeira do proprietário e quanto ele pode pagar pelo atendimento e tratamento do animal. Atendemos diariamente em horário comercial e aos finais de semana”, disse o professor Luiz Henrique de Araújo Machado.

Já a Unip de Bauru não possui viatura de recolha, mas oferece o atendimento se o proprietário não tiver condições de pagar por ele. O funcionamento da clínica na universidade é de segunda a sexta-feira, das 8h às 17h.