Em vez de filhos, casais preferem ter bichos

Ela tem 3 anos, pele e olhos claros, orelhas e dedos perfeitos. É meiga e carente. Já sabe ir ao banheiro sem ajuda, fica algumas horas sozinha e se alimenta tranquilamente quando sente fome. Brigitte, filha do matrimônio de quatro anos de Adriano Abreu e Sheila Tozzi, não é uma menininha superdotada. É uma gata, adotada pouco tempo depois da união, exemplificando uma tendência recente: casais que optam por bichos de estimação como membros da nova família.

A ideia de não ter filhos já é realidade para muitos casais, mas outros, indecisos, preferem experimentar primeiro o que é criar um animal para, então, ver se têm vocação para a paternidade. Para a professora aposentada da Unesp Marilene Krom, doutora em psicologia clínica pela PUC-SP e psicoterapeuta individual e familiar, “a família, tal como foi constituída no passado, tinha como prioridade a prole, visando a manutenção de bens e a preservação familiar do clã. As perspectivas atuais são diferentes, assim como são diversos os interesses e expectativas das pessoas.”

Para Marilene, no momento histórico atual de liberdade de pensamento e possibilidade de escolha de projetos de vida, o não ter filhos pode ser considerado uma alteração neste padrão de comportamento de realização pessoal.

Outro aspecto a considerar é que os bichos de hoje têm mais ‘regalias’ do que há 30 anos, como participar de passeios em família, morar dentro de casa, ter alimentação diferenciada e tratamentos estéticos – sendo, de certa forma, humanizados.

Muitos humanos acabam não fazendo mais distinção entre as espécies.

A opção de criar animais como filhos muitas vezes vem da necessidade de uma companhia – e tem uma pitada de egoísmo, algo que a maioria dos casais não nega. A ideia de ter um filho implica a sensação de perda da liberdade ou o medo de não conseguir a estabilidade financeira e profissional necessárias. Há pessoas que não têm disponibilidade e nem disposição para cuidar de uma criança. Os especialistas em comportamento familiar, no entanto, deixam claro que um animal jamais irá substituir um filho.

“É o reino da tirania da vontade. É mais do que o egoísmo: é um imediatismo. Desde crianças somos centrados no próprio umbigo, principalmente de uns 30 anos para cá. Jamais um pet vai substituir uma criança”, acredita o psiquiatra Içami Tiba. Segundo ele, um bicho de estimação dá menos trabalho, não reage ou questiona. “Filho reage, responde. A criança aprende com os pais e sabe contestar. Não querer ter filhos demonstra uma fragilidade emocional grande, porque faz parte da maturidade e do ciclo biológico você sobreviver e perpetuar. Quem tem filhos curte mais do que ter apenas um bicho de estimação. No filho a gente se vê, no bichinho não.”

Há casais que contestam essa posição. Flavia Castanheira, de 44 anos, e Evandro Rodolpho, de 46, já estão juntos há 14 anos e a opção de não ter filho veio antes mesmo do casamento. Para Flávia, o mundo é incerto para se ter um filho. “Criança você não cria, educa. Eles aprendem mais vendo o que as pessoas fazem do que pelo o que você fala. Você não tem controle.

A verdade é que não sinto falta de ter um filho, mas se tirar um dos meus cães não suportaria”, confessa. E admite que tem um lado egoísta “Tenho uma vida super tranquila. Vou para aonde quero e não tenho de me preocupar. E a cada idade da criança há um problema diferente. Meus filhos não vão para balada, não bebem, não usam drogas e não conversam e nem namoram com quem eu não quero. Muitas pessoas têm filhos pelos motivos errados: pela cobrança da família e da sociedade, para provar que são férteis ou porque os amigos têm.”

Flávia conta que as pessoas criticam sua escolha. “Minha cunhada um dia me falou que eu não sei o que é chegar cansada em casa, o filho te abraçar e dizer ‘mamãe eu te amo’. Disse que meus filhos nunca vão falar isso para mim. Se algum dia um cachorro virar para mim me abraçar e dizer isso, saio correndo”, brinca.

Já Sheila e Adriano Abreu, ambos na faixa dos trinta anos, pensam em ter um bebê, mas sempre adiam essa conversa. “Nunca chegamos a determinar quando seria, mas também não descartamos a possibilidade. Hoje, confesso que penso mais em ter um bebê”, afirma Sheila. Para seu marido, porém, ainda não há consenso se terão filhos. E o casal evita falar sobre isso. “Um filho é algo para o futuro. Meu maior medo por não tê-los é morrer sozinho, mas é uma decisão difícil. Quando você conquista independência financeira e liberdade, acha que um filho pode tirar isso. Eu sei que é um pouco de egoísmo, mas cheguei a uma idade em que tenho um emprego estável e conquistas. Fica mais difícil abrir mão de tudo isso”, afirma Abreu.

A indecisão de Abreu, ele assume, está relacionada a medos e inseguranças, principalmente a de não ter controle sobre a situação. “Imagino que no dia em que tiver um filho eu não vou deixá-lo sair à rua. Tenho medo de nunca mais dormir tranquilo”, explica. Por tudo isso, por enquanto, o casal utiliza métodos contraceptivos para adiar a chegada do herdeiro. E pensam mais em adotar outra gata para fazer companhia para Brigitte.

Para a psicoterapeuta Marilene Krom, o cuidado e o carinho com animais pode ser um bom início, mas os casais, ao não terem filhos, “perdem a criança, o desenvolvimento do ser humano, que é uma das tarefas mais lindas o acompanhar deste crescimento. O animal sempre será limitado a seu próprio crescimento”, diz.

Segundo Marilene, “o humano crescerá, aprenderá e de criança dependente se tornará um adulto autônomo, criativo, independente e amoroso. Assim, a relação entre pais e filhos se tornará uma das riquezas humanas mais significativas”.