Os grandes mitos caninos

Ah, agosto, mês do folclore, que é uma das coisas mais injustiçadas que existem.

Muita gente boa entende “folclore” não como sinônimo de sabedoria & tradição popular e sim de besteirol & boataria. Mas é fato que não faltam mitos, noções erradas e até lendas urbanas sobre tudo que é assunto – inclusive cães. Vamos lembrar aqui alguns dos mitos sobre a cinofilia mais, digamos, acreditáveis e por isso muito comuns, do tipo “eu acredito porque foi minha avó quem me contou” ou “sei que é verdade porque vi na televisão ou na Internet”.

É verdade que quem mora num mundo como este e vê o que se vê tende a acreditar em tudo mesmo. Mas nem comentaremos aqui histórias realmente inacreditáveis, como aquela de que os Dobermans são potencialmente perigosos porque seus cérebros não param de crescer ou a outra segundo a qual um cão que morder algum outro bicho e engolir sangue poderá se tornar violento. O que lembraremos aqui são mitos até que acreditáveis, meias-verdades e quase-fatos, separados por assuntos, para organizar ainda mais a bagunça: a saúde do cão, sua alimentação, sua socialização e seu adestramento & treinamento.

Saúde
“Focinho quente é sinal de doença.”

A temperatura dos focinhos costuma subir durante o sono do cão, daí ele acordar de nariz quente, o que é normal. Só haverá problema se, além de quente, o focinho do bicho estiver seco e o cão mostrar grandes alterações de comportamento.

“Cães não precisam ser vermifugados quando não saem à rua.”

Como se vermes tocassem campainha ou pagassem pedágio… Mesmo no recesso do lar os caninos podem contrair micróbios trazidos por mosquitos. Prudência, canja de galinha (cuidado com os ossinhos! Mais sobre isso daqui a pouco) e vermifugação não fazem mal ao canino são ou doente.

“Cães avisam quando estão doentes.”

Na verdade, eles conseguem esconder as doenças, para não se mostrarem vulneráveis ao “inimigo”, e os sintomas só costumam aparecer quando a doença ou incômodo estiverem bem avançados, dando então a impressão de que o bicho está chamando a atenção para o problema.

“Cães só enxergam em preto e branco.”

Eles apenas vêem menos cores que o ser humano, pois seus olhos têm menor quantidade de celular cônicas, que permitem distinguir as cores.

“Cadelas devem ter ninhada antes de serem esterilizadas.”

Do ponto de vista de saúde e bem-estar do bicho, castração (para machos) e esterilização (para fêmeas) são benéficas, diminuindo o risco de tumores em mama, testículos e próstata e de infecções urinárias.

“Vira-latas são mais saudáveis que cães de raças puras.”

Não é bem isso. Vira-latas costumam estar menos sujeitos a enfermidades ou problemas comuns a certas raças, mas nem por isso são invulneráveis ou mais imunes a doenças que outros cães.

Alimentação
“Cães comem pedras, papéis e colchões atrás de nutrientes para complemento alimentar.”

Na verdade, cães gostam de mordiscar tudo o que aparece para se divertirem, ter o que fazer e chamar atenção, embora possam se beneficiar da eventual.presença de proteínas e outros nutrientes do que comerem.

“Ossos são sempre bons para o cão.”

Não faltam histórias em quadrinhos e desenhos animados em que o melhor tesouro do cão é seu osso. Na vida real, tudo bem o bicho roer ossões grandes, de preferência com tutano, já que muitos cães gostam de ficar mordiscando coisas e todos precisam se alimentar. Mas nada de ossos pequenos – basta lembrar da atenção que devemos dar a crianças humanas que não devem ser deixadas com “partes pequenas que podem ser engolidas”. Ossos cozidos também são problema, pois podem se romper e formar rebarbas perigosas. (Vai ver que foi esta a inspiração daquela marchinha aparentemente nonsense gravada por Silvio Santos nos anos 1970, que dizia “Socorro, socorro/Ai, ai, eu morro/Chegou a vez do osso morder cachorro”.) Sem falar que o cão tem tanta necessidadade de higiene bucal quanto o ser humano. Para o cão se divertir sem riscos, ossos de borracha e náilon são ideais.

“Se você mexer na comida do cão enquanto ele estiver comendo, ele te morde.”

Se o cão ataca quem mexe, acidentalmente ou não, na comida dele, inclusive os donos, sejam adultos ou crianças pequenas, o problema está na socialização – ou falta dela. Sempre comparo cães a crianças pequenas, e me lembrei daqueles pais sempre ocupados e pouco presentes, que “têm uma ligeira ideia de umas pessoas pequenininhas que andam pela casa”. Do mesmo modo, não basta encher a gamela de comida, dizer “oi” e “tchau” e pronto. O cão tem que entender que, mais que donos, você e seus filhos são amigos dele, não inimigos que querem roubar-lhe a comida. Ele precisa até ficar contente quando os donos, sejam de que idade forem, vêm mexer em seu prato, porque sabe que vai ganhar carinho ou um petisco. O ideal é começar a alimentar o peludo dando-lhe comida na palma da mão, e depois, a cada vez que lhe servir comida (servir mesmo, não simplesmente jogá-la como aqueles restaurantes que fazem por merecer que tanta gente reclame nos jornais), mexa na gamela, começando por uma mexidinha e, com o tempo, enfiando a mão na comida mesmo. Daí que, se alguém chutar sem querer o prato ou uma criança bulir na comida, ele não se sentirá ameaçado.

Socialização
“Cães e gatos são inimigos.”

Isso virou até símile, “brigar como cão e gato”. Na verdade, depende do temperamento de cada cão e gato; o que não falta são gatos que não se dão bem nem com outros gatos e cães que vivem às turras até com outros cães. Depende também da socialização: também não faltam caninos e felinos que só faltam se dar as patas e sair pelo mundo cantando “Amigos Para Siempre”. Um bom exemplo é o do jornalista e produtor cultural André “Pomba” Cagni, “pai” de duas cadelas e uma gata, respectivamente a Cocker Penélope Demônio (nascida em 2003), a Schnauser Tetéia Mocréia (já uma senhora de dez anos) e uma Siamesa que, embora chegada mais tarde (nasceu em 2007), tem o nome mais longo, Pitbull Triplex 666 From Hell. (Sim, falaremos em outra oportunidade sobre os nomes dados a nossos animais de estimação.) “Quando a gata chegou, ela tinha acabado de desmamar e já foi mamando na Penélope”, lembra Cagni. “Apesar de castrada, Penélope estava com gravidez psicológica e ainda tinha leite. E hoje as três interagem e brincam o dia todo.”

“Cães precisam de quintal.”

É claro que ninguém gosta de viver sufocado e confinado em “apertamento”. Mas pode reparar: dê a seus cães um quintal do tamanho de um campo de futebol, e a maior parte do tempo eles vão ficar à porta esperando a hora de entrar em casa. No fundo, muita gente quer um quintal não para o cão ter seu próprio espaço e se divertir, mas sim para ele ficar lá fora e deixar o dono em paz. Como não dizia aquela canção: cachorro não quer só comida, cachorro quer comida, diversão e fazer arte, cachorro quer saída para qualquer parte (desde que com saquinho e coleira, claro) – e diversão é solução pro cão. Mais que ficarem confinados em casa e quintal, cães querem brincar, correr, se exercitar e se divertir na companhia dos donos. Afinal de contas, seres caninos são como humanos: ambos são bichos de matilha e, embora nem sempre pareça, gostam de vida social, inclusive com “cães” esquisitos que andam em duas patas e falam uma língua complicada e incompreensível.

“Cães só abanam a cauda quando estão felizes.”

Tem até a piada do cara que manda cortar bem rente a cauda de seu cão porque “minha sogra vem nos visitar e não quero nenhuma manifestação de alegria nesta casa”. Mas o cão abana a cauda devido a diversos estados de excitação, ansiedade ou mesmo agressividade. De modo geral, cauda abanando erguida a 90 graus significa que o bicho está agressivo; a cauda baixa mostra que o cão está agressivo porém desconfiado e na defensiva; e a cauda praticamente na horizontal é convite para brincar. Convém lembrar que a linguagem corporal dos cães, embora mais simples que nossa linguagem falada, não é tão simples quanto parece; o cão pode querer dizer uma porção de coisas não só pela cauda, mas também pelas orelhas, olhar, posição da cabeça e outros detalhes. Na dúvida, antes de se aproximar de um cão estranho, converse com o dono!

“A mandíbula de um Pitbull se prende quando ele morde.”

No máximo, a mordida de um Pitbull é mais forte que a maioria dos outros cães, mas esta história de mandíbula com “fechadura” é mais um produto da injusta má reputação do Pitbull como besta-fera das piores (bem que os produtores do filme Flashdance fizeram o que podiam para desmenti-la quando alçaram o famoso Grunt ao estrelato).

Adestramento e treinamento
“Cães farejadores de drogas são viciados nelas para as detectarem.”

O treinamento de caninos policiais para reconhecimento de determinadas substâncias é essencialmente o mesmo dado a seres humanos, policiais ou não, que aprendem a detectar a presença ou consumo de drogas por indícios como cheiros ou mudanças de comportamento; ninguém precisa se transformar em ávido consumidor. (Por sinal, os melhores traficantes costumam ser caretões.) O treinamento do cão para rastrear drogas é fazê-lo associar o aroma delas a alguma coisa boa, como um brinquedo, afago ou petisco, premiando-o quando tem êxito na busca.

“Cão macho é melhor para ser guarda que a fêmea.”

Muitos pensam assim devido ao macho ser mais agressivo. Mas o que define um bom guarda, canino ou humano, não é a agressividade e sim a verdadeira coragem; não confundir com aquela “coragem” que nasce do susto e do medo – ou, como cantava o arretado Gordurinha, “estupidez não é valentia”. E valentia muitas fêmeas têm de sobra. Obviamente, alguns caninos, machos ou fêmeas, têm temperamento mais adequado à guarda que outros. Outro detalhe: muitos cães machos de guarda podem ser tapeados se o terreno vigiado for “invadido” por uma Mata Hari peluda no cio ou mesmo um pedaço de tecido com o mesmo aroma; a tendência será o instinto de reprodução uivar mais alto e o bonitão abandonar a guarda, indo atrás da fêmea ou de seu cheiro. E a adestradora Maíce Costa Carvalho lembra um detalhe interessante: “As fêmeas costumam guardar as pessoas; os machos guardam o território. Tal diferença provavelmente se dá devido à sua vida selvagem, onde os machos cuidam do território, e as fêmeas dos filhotes e membros mais fracos da matilha.”

“Os melhores cães de guarda são os mais agressivos.”

Acabamos de ver que agressividade só não é nada suficiente; o canino precisa ser socializado e adestrado para distinguir amigos de inimigos e não sair atacando e mordendo quem não deve.

“Gatos são mais espertos que cães.”

Depende do que se considera “esperteza”. O gato pode ser mais auto-suficiente, mas o cão é muito melhor (ou pelo menos demonstra mais disposição) para aprender comandos.

“Cão deve ser treinado por um profissional.”

Equivale a dizer que crianças devem ser criadas por babás e não por pai e mãe. Não falamos há pouco em pais e mães presentes? Pois bem, se você deixar outra pessoa educar seu cão, é a ela que ele vai acabar obedecendo!

“Se o cão fizer cocô onde não deve, esfregar seu focinho nas fezes o ensinará a não fazer isso nesse local.”

O resultado será que o canino adquirirá a habilidade de fazer cocô no local proibido logo que você virar as costas.

“Não se pode ensinar truques novos a cão velho.”

Não bastassem preconceitos como o sexismo e o racismo, temos o “idadismo”, desta vez aplicado aos cães com a desculpa de esta noção ter se tornado um provérbio “aplicável” a todos. Bem, uma característica interessante do folclore – folclore no melhor sentido, o de sabedoria popular – é de que quase todo provérbio tem seu oposto. No caso, trata-se do velho (no bom sentido) e bom “nunca é tarde para aprender”. Bastam exercícios físicos e mentais e boa alimentação para se manter a boa forma em qualquer idade, inclusive para assimilar coisas novas. (Apenas dois exemplos são o ator, dançarino e cantor Fred Astaire, ainda disposto a aprender a andar e dançar de skate aos 78 anos de idade, e a fotógrafa alemã Leni Riefenstahl, que começou a tirar fotos subaquáticas aos 72 anos.) É claro que, tal como os humanos, o cão mais idoso pode apresentar uma ranhetice ou outra e já ser bastante metódico e sistemático, mas nem por isso vai deixar de aprender novidades com um pouco de esforço e paciência do dono e/ou treinador – sem falar que muitas vezes o canino muda de dono já com certa idade precisa conciliar o que já sabia com o que precisa assimilar.

E aí está uma boa coletânea comentada de noções que um dia se tornarão tão folclóricas – no sentido de curiosas – e obsoletas quanto as de que manga com leite faz mal, dormir sobre o lado esquerdo faz mal ao coração e uma meia velha enrolada no pescoço cura soluços. Realmente, é preciso ouvir tudo e acreditar em metade… inclusive quando são nossos amigos caninos que dizem.